Ativismo nas ditaduras da América Latina é documentado
Obra sobre o grupo ativista Clamor traz parâmetro de toda a ditadura nas décadas de 70 e 80
Legenda: Grupo manteve a chama da esperança acesa nos países atingidos pela ditadura militar
Por Thaís Nóbrega
Jornalista conformado não é jornalista. Esse tipo de afirmação não vem escrita nos manuais de redação nos quais estes profissionais se baseiam diariamente. É preciso ter isso no sangue, ter isso no lado de dentro, na essência. Foi assim que o jornalista e escritor Samarone Lima estendeu, a princípio, o que seria a sua tese de mestrado num rico material sobre o período dos governos militares na América do Sul, focando no trabalho do grupo Clamor. O livro Clamor: A vitória de uma conspiração brasileira (Ed. Objetiva, 2003, 260 p) narra a luta desse grupo pela defesa dos direitos humanos nas décadas de 70 e 80 – épocas da repressão e das ditaduras militares em diversos países do chamado cone sul da América, como o Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai e Argentina.
O grupo, composto pelo advogado de presos políticos, Luís Eduardo Greenhalgh, o pastor presbiteriano Jaime Wright, a jornalista inglesa Jan Rocha, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e diversos outros contribuintes, como o jornalista Ricardo Carvalho, foi formado em 1977, com o intuito de coletar e documentar relatos sobre a realidade das ditaduras nesses países do cone sul. A partir dessa coleta de dados, a divulgação deles era imprescindível para que o Clamor conseguisse realizar o que queria: manter a chama da esperança acesa na busca por mudanças significativas nesse período.
Um dos pontos que mais chama atenção na história da formação do Clamor é o fato da importância dos personagens encontrados pelo autor: eles são pessoas imprescindíveis à narrativa, de maneira que nos contam tudo o que precisamos saber a respeito do que vinha a ser o Clamor. Um exemplo disso? As articulações da jornalista Jan Rocha para que o grupo pudesse surgir. Jan, que era uma correspondente internacional de prestígio, que tinha excelentes fontes de informação, que tinha sempre ótimas pautas para suas reportagens, decidiu não fechar os olhos quando os indícios de que algo muito ruim acontecia em toda essa região e que, a todo momento, ‘o sol era tapado com a peneira’. Como correspondente militar, ela tinha contato direto com embaixadas internacionais e diversas organizações de direitos humanos, o que a faria decidir pelo não conformismo e a levaria a dar o passo inicial para a formação do grupo: utilizar o seu ‘faro’ jornalístico para coletar informações e aliar interessados nessa luta pela salvação de diversas vidas e pela conquista de vitórias no sistema ditatorial ao qual estavam submetidos.
No entanto, o que (também) fez o Clamor ser um grupo de ação vitorioso era o fato de que realmente existia ali uma dedicação inexplicavelmente forte o suficiente para que tudo, de alguma forma, sempre saísse da melhor maneira possível. Mesmo os seus membros tendo trabalhos/ocupações diferentes, o essencial nessa luta era a característica comum e a mais gritante presente ali: o estado de espírito de todos, a vontade de lutar contra o que estava errado, o que era errado, o que era desumano (aqui, quando se fala em estado de espírito, nos deparamos com uma questão bastante importante: o quanto a narrativa escolhida por Samarone nos ajuda a alcançar isso; até porque, ele transmite as informações, as idéias, os diálogos dos personagens de tal maneira que nossos olhos correm as inúmeras páginas do livro de maneira sagaz e faminta).
Agindo de maneira rápida e silenciosa, na maioria das vezes junto a outros grupos de direitos humanos atuantes na América do Sul, o Clamor conseguia resultados surpreendentes e passava a ser reconhecido como órgão de combate à tortura, à repressão, recebendo contribuições em diversas áreas (política, financeira e até na área de atuação direta nos casos). Uma dessas contribuições foi a do jornalista do jornal Folha de São Paulo, Ricardo Carvalho. Ricardo, que cobria a sessão de política do jornal, vinha se dedicando a cobertura sobre os direitos humanos, e, como toda a equipe do Clamor, tentava atuar contra o regime opressor. Numa das partes mais emocionantes do livro (em especial para os leitores que estudam jornalismo), Ricardo afirma categoricamente que ‘alcançou a essência da vocação libertária do jornalismo’ quando uma mãe e ex-presa política o procura para agradecê-lo por uma reportagem que ele escreveu para uma revista sobre algumas crianças que estavam desaparecidas no Uruguai e tinham sido encontradas.
Ao longo de toda a leitura do livro podemos perceber estreitos laços entre a atuação do grupo, as suas conquistas e a ajuda da imprensa em toda essa ‘conspiração brasileira’. E é disso que o leitor precisa: saber o porquê daquele livro ter sido escrito. Com certeza, Samarone apostou nas palavras certas quando quis que a sua tese se transformasse em um rico material para os estudantes de jornalismo e para os interessados, em geral, em ditaduras, opressão, etc, pois, mesmo nos capítulos onde ele expõe dados e mais dados técnicos, as palavras parecem ser tão suaves que o leitor não tem vontade de pular de capítulo.
O que dá pra se notar ao longo de todo o desenrolar das 260 páginas do livro é que a bagagem que esse material oferece ao seu leitor não é só histórica e de caráter humanista (quando desperta a emoção do leitor durante os capítulos), mas diria que também é ‘acadêmica’- principalmente na área jornalística. Não, você não irá encontrar no livro regras básicas de entrevistas, coleta de depoimentos, dicas sobre jornalismo investigativo, ou um livro nos moldes do Sobre Entrevistas, por exemplo. Aliás, nesse livro citado anteriormente, a autora Stela Guedes Caputo diz que “Nem todas as perguntas que fazemos, tanto para uma matéria como para uma pesquisa acadêmica, garantem respostas. São perguntas que o entrevistador faz a si mesmo e acumulam dentro de nós palavras feitas de flores que morreram sufocadas”.
Eu, como estudante de jornalismo, quando terminei a leitura do último capítulo do Clamor, lembrei na hora dessa citação. Nesse capítulo, compreendi cada palavra empregada ali, cada vírgula, cada tentativa de contenção do escritor em meio ao relato da parte da história na qual ele resolve se misturar a ela, fazer parte da realidade que ele, com todo o cuidado e dedicação, expôs. Ir em busca do casal de irmãos Anatole e Vicky o fez, certamente, terminar o livro com o sentimento de dever cumprido; como se essa fosse a última etapa do seu trabalho de resgate dessa história – da imortalização dela num livro. É como se ele não conseguisse terminar tudo isso sem acalmar os seus ímpetos jornalísticos, a sua inquietação pelo algo mais, e ir em busca do caso que mais o conquistou em meio aos milhares de casos que o grupo tinha arquivado só nos deixa claro que uma das metas profissionais do Samarone é o seu aperfeiçoamento subjetivo.
Nessas páginas não se vê só a história do Clamor, mas também o relato de alguém que, certa vez, foi leitor de todo esse material e que quis contribuir com essa história, transmitindo-a para que outros leitores compartilhem dessa mesma vontade e possam fazer parte de algo tão enriquecedor como foi/é a história do Clamor – mesmo que seja lendo e passando-a adiante.

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